De língua de escravos a língua de todos: o papiamento no Caribe holandês
Sobre as origens afro-portuguesas e a influência da produção artística e da tradução em uma língua crioula que goza de grande vitalidade. Uma entrevista de Wilson Alves-Bezerra a Ramon Todd Dandaré
Quem chegar a Aruba será surpreendido por seu multilinguismo. A bela ilha do Caribe, habitada inicialmente pelo povo Caquetio, tomada pelos espanhóis em 1499 e ocupada pelos holandeses em 1633, traz as marcas da história das múltiplas línguas de seus habitantes: o holandês, o espanhol - que não se limitou ao primeiro século de presença hispânica e que segue vivo por influência da península venezuelana de Paraguaná, a meros trinta quilômetros de distância - e sobretudo o idioma local, o papiamento.
Falado por aproximadamente 320 mil pessoas no mundo, o papiamento é o idioma oficial de Aruba e das ilhas vizinhas, Curaçao e Bonaire, e a língua materna ou de herança dos falantes da diáspora, dispersos pelo mundo. Há diferentes teorias sobre a origem do papiamento, mas o consenso é de que o nome do idioma crioulo vem da voz onomatopaica “papear”, que em português significa “conversar” ou inclusive “gorjear” e em espanhol significa “falar confusamente ou balbuciar”. Neste vocábulo, revela-se parte importante das origens do idioma.
O linguista Ramon Todd Dandaré é um dos mais reconhecidos pesquisadores do papiamento. Eu o conheci no primeiro International Poetry Encounter, organizado pelo poeta Arturo Desimone, com o apoio da Basha Foundation, do Prins Bernhard Cultuurfonds Caribisch Gebied e do programa Looren América Latina, entre outras entidades. O encontro teve lugar em museus, instituições educacionais e espaços públicos de Aruba, e contou com a presença de poetas, tradutores e da comunidade local. Membro da fundação Lanta Papiamento, Don Ramon desempenhou-se como tradutor literário traduzindo ao idioma local a obra de alguns dos poemas participantes. Aproveitei a oportunidade para entrevistá-lo.
Em seu artigo “Emancipation of the papiamentu language”, o senhor afirma que o papiamento passou de ser língua de escravos a ser língua de todos. Poderia explicar-nos sua hipótese?
De acordo com minha hipótese, o papiamento teve sua origem a partir de uma língua franca afro-portuguesa na costa ocidental da África. De lá, passou por Cabo Verde e chegou a Curaçao, onde continuou evoluindo. Depois, expandiu-se para Aruba e Bonaire (no século XVIII) e continuou evoluindo nas três ilhas, sofrendo com o passar do tempo as necessárias influências de todos os grupos étnico-sociais até os nossos dias. No século XVII, a população de Curaçao era formada por quatro grupos étnico sociais: (1) a classe alta holandesa protestante; (2) a classe alta judaico-portuguesa (sefardita), que chegou a Curaçao nos anos cinquenta; (3) a população indígena dos caquetios e (4) os escravos africanos, que estavam sob o domínio dos grupos da classe alta e em contato também com os caquetios. Por razões de ordem prática, os holandeses e os judeus viram-se obrigados a utilizar a “língua dos escravos”, como eles mesmos a denominavam, como língua franca, para poder se comunicar. Isso teve como consequência que a classe alta não impôs sua língua sobre a classe baixa, e sim que o papiamento rapidamente tornou-se a língua de todas as classes sociais.
Contrariamente ao que costuma suceder...
Isto é, três fenômenos fizeram com que o papiamento evoluísse de um modo como nenhuma outra língua crioula evoluiu: (1) os colonizadores adotaram a língua dos escravos; (2) os escravos foram educados em sua língua nativa, o papiamento, pela igreja católica e (3) os filhos da classe dominante foram criados quase exclusivamente pelas iaiás falantes de papiamento. Assim, o papiamento tornou-se a língua geral, com um status elevado.
No fim do ano passado, o senhor lecionou uma última aula e declarou que iria se dedicar exclusivamente à tradução literária ao papiamento. Por que entende que é fundamental traduzir ao papiamento?
O papiamento é uma língua relativamente jovem, com algo em torno de apenas 350 anos de existência. Isto é, quando o papiamento era recém-nascido, já haviam surgido o Quixote de Cervantes e as obras de William Shakespeare. Existem três documentos (até o momento) que parecem ser os textos escritos mais antigos em papiamento: o fragmento de uma carta, de 1775, de um judeu de Curaçao para sua amante, uma carta de 1783 de uma senhora holandesa a seu marido holandês e um documento assinado por 26 guardas florestais em Aruba em 1803. Contudo, o primeiro exemplo de obra literária escrita em papiamento data apenas de 1905, em Curaçao: o poema Atardi, de Joseph Sickman Corsen. E, apesar de que desde aquele momento seguiu sendo produzida literatura em papiamento - mesmo que não de forma suficiente - e tem havido muita tradução literária - sobretudo de peças de teatro reconhecidas mundialmente -, é preciso traduzir muito mais as obras de alcance mundial, tanto prosa quanto poesia. Portanto, acredito que é de grande importância traduzir ao papiamento obras reconhecidas em seus respectivos cânones, tanto de idiomas conhecidos por nós (espanhol, holandês, inglês etc.) quanto de idiomas não tão conhecidos (línguas africanas, asiáticas, outras europeias etc.).
A tradução literária pode fortalecer uma língua como o papiamento, reconhecida oficialmente em Aruba há apenas vinte anos?
A atividade tradutória teve e continua tendo um efeito benéfico, já que ampliou o alcance das atividades às quais se podia aplicar o papiamento. O estatuto do idioma melhorou na medida em que foi sendo traduzido ao papiamento um grande número de obras internacionalmente conhecidas. Como ocorre com quase qualquer idioma, o desenvolvimento da forma escrita é um passo crucial no crescimento do idioma propriamente dito. Os falantes de papiamento têm uma dívida de gratidão com escritores, poetas, dramaturgos, músicos e outros que utilizaram o idioma em seus trabalhos.
Apesar de o papiamento ser uma língua cotidiana - há inclusive programas de televisão, rádio e jornais no idioma -, no país não há muitas livrarias nem editoras que publiquem na língua local. Como o senhor avalia tal situação e como poderiam ser incentivadas editoras locais?
A situação é alarmante e triste mas, em parte, compreensível. Aruba é uma ilha pequena, de apenas uns 115.000 habitantes. O papiamento até o momento é uma língua de instrução em apenas três escolas da ilha, o holandês é a língua de instrução em quase toda a educação. Ou seja, não há muita demanda por obras em papiamento, como tampouco há demanda por obras em outros idiomas, já que não há muito o hábito da leitura, se lê muito pouco, tanto obras e ficção quanto de outra índole. Na verdade, há uma editora, Charuba, mas que publica muito pouco porque funciona com voluntários, quase todos aposentados, e não houve uma sucessão efetiva para uma nova geração. Creio que tanto uma maior produção literária original em papiamento quanto o aumento da tradução de autores poderiam impulsionar a atividade editorial. O papiamento deve ser introduzido na educação para que possa haver um maior interesse e um maior amor pela leitura, o que levaria a uma maior e melhor gestão por parte das livrarias no que tange a produção, publicação, distribuição e venda de obras literárias.
Qual é a influência da situação linguística específica de Aruba na produção literária? Qual é a relação dos escritores com o papiamento?
A produção literária de qualquer país tem sua base fundamental na vitalidade de sua língua nacional, não apenas a língua falada, mas também a língua escrita. Portanto, enquanto não se utilizar o papiamento no sistema educacional, haverá muitas dificuldades para poder produzir grande quantidade de obras escritas no idioma. É de se elogiar que a imensa maioria dos autores de Aruba, como ocorre nas demais ilhas, estejam produzindo sua obra no idioma nativo, o papiamento, e não na língua que aprenderam na escola, o holandês. É de se estranhar que, apesar da presença na ilha de falantes de três idiomas europeus (espanhol 13%, inglês 8% e holandês 6%) e de uma grande quantidade de outros idiomas, a produção literária se realiza geralmente em papiamento, excetuando-se uma ou outra obra em inglês ou holandês, e quase nada em espanhol. É admirável que, apesar da situação linguística na qual prevalecem as línguas europeias na educação, governo, justiça, comércio e turismo, a produção artístico-cultural (literatura, música, teatro etc) se realiza em papiamento.
Obras escritas originalmente em papiamento costumam ser traduzidas a outras línguas?
Em geral, a tradução literária em nossas ilhas é de outras línguas ao papiamento. Tem havido bem poucas traduções de obras literárias do papiamento a outros idiomas e, quando tem ocorrido, é sobretudo ao holandês. Tanto é assim que alguns autores optam por publicar suas obras em dois, três e até quatro idiomas de uma só vez no mesmo volume. Está começando a ser discutido entre as entidades culturais dos Países Baixos como seria possível implementar projetos de tradução entre as duas línguas, do holandês ao papiamento e vice-versa. Além das peças teatrais, a tradução literária de obras mundialmente reconhecidas está apenas começando a ver a luz, mesmo que no passado já tenha havido vários projetos de tradução de obras infantis e juvenis, por exemplo. Finalmente, é preciso ter em conta que a tradução literária de obras reconhecidas mundialmente até o momento é uma atividade realizada sobretudo por iniciativas pessoais, de modo isolado. Há bem poucos tradutores literários e quase não há críticos literários em Aruba.
Estima-se que pouco mais de 300 mil pessoas falam papiamento no mundo. Que futuro o senhor vê para o idioma dentro de algumas décadas?
Em um documento de 2003, "Vitalidad y peligro de desaparición de lenguas", a UNESCO estabeleceu nove fatores para indicar a vitalidade de uma língua. Após fazermos uma pesquisa sobre o papiamento, concluímos que o idioma, até aquele momento, era uma língua com muita vitalidade e que não se encontrava em perigo de desaparecimento ou extinção. Entretanto, há alguns fatores de importância em relação ao futuro da língua. Um dos mais importantes é a ausência da língua no sistema educacional. Para salvaguardar a existência da língua, é de vital importância introduzir o papiamento na educação, ao menos na educação básica. Outro fator é a atual influência do idioma inglês em nossa sociedade, em especial na juventude, que poderia conduzir a mudanças no léxico (e talvez também na morfossintaxe) do papiamento, de tal modo que, em certo momento, poderia parecer uma língua crioula de relexificação do inglês ou com mudanças que poderiam produzir a descrioulização da língua. Por outro lado, se se mantém no transcurso geracional a produção comunicativa da mídia de massa e a criação de obras artísticas em papiamento, o idioma poderá manter sua vigência e vitalidade por um longo tempo.
Ramon Todd Dandaré (Riohacha, Colômbia, 1942) é linguista, poeta e tradutor literário. É autor, com Lawrence D. Carrington e Dennis R. Craig, de Studies in Caribbean Language (Society for Caribbean Linguistics, 1983). Traduziu ao papiamento autores como o brasileiro Ariano Suassuna, o norueguês Henrik Ibsen e o grego Sófocles: sua Antígona mantém os versos iâmbicos do original grego. Em 2018, na Colômbia, foi publicada sua biografia, E caya di Monche, escrita por Benjamin Barliza (Ed. Imageprinting).
Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, Brasil, 1977) é poeta, tradutor e docente de literatura hispano-americana no Brasil.